A  noite inesquecível
       Milton J. Pantaleão       
                 Porto Alegre RS              
 
— Preciso terminar esta droga! — praguejou Agripino, debruçado sobre uma montanha de papéis.
Olhou pela undécima vez o relógio de pulso. Agora passavam 25 minutos da zero hora. Não sabia como acertar o de parede, que marcava exatamente meia-noite.
— Se não encontrar esta maldita diferença, não sei o que farei. O que vou dizer ao chefe amanhã? — continuava pensando em voz alta, enquanto somava e ressomava as fichas de contabilidade. 
A velha Olivetti, manual, já estava quente, de tantas operações confusas que fora obrigada a fazer. A altura da pilha de fitas de papel usadas ameaçava o recorde nacional.
“Gostaria que o computador já tivesse sido inventado!” — sonhava ele.
Um sono inclemente começou a acossá-lo. Foi ao banheiro, lavou o rosto e bebeu o último café que a servente deixara na cafeteira ao sair. 
Enquanto ela limpava as mesas do enorme salão, Agripino ainda tinha com quem conversar, mesmo que esta conversa não tivesse qualquer conteúdo prático. Depois da saída dela, só seus botões tinham disposição para escutá-lo.
— Maldição! — vociferou o contador quando as lâmpadas da sala se apagaram. Não fosse a tênue luz de um poste de iluminação na rua, a escuridão seria total.
— Será que a luz demora a voltar? Nada posso fazer, senão aguardar. — prosseguiu o monólogo.
Um estranho ruído se fez ouvir no fundo da sala.
— Quem está aí? Voltaste, Desdêmona? Esqueceste algo? Tens uma lanterna? — perguntou Agripino, com um leve tremor na voz. O silêncio que se seguiu foi a resposta que temia ouvir. Seria improvável que a faxineira tivesse retornado ao escritório àquela hora da noite. O minuto seguinte parecia interminável. Aguçou os ouvidos, porém nada mais escutou. O movimento de carros naquela rua sem saída há muito cessara.
Acalmou-se. 
— Deve ter sido um rato — pensou, otimista. Tinha medo de ouvir a própria voz. Tateando entre as mesas, dirigiu-se à porta. Olhou as escadas que levavam ao andar térreo. Estavam mergulhadas na escuridão. Não se arriscaria a descê-las, pois de certa feita torcera o pé esquerdo ao tentar fazê-lo às pressas, correndo.
Procurando disfarçar o nervosismo, voltou às apalpadelas à sua mesa, tentando lembrar uma piada que lhe haviam contado naquela manhã. Sua memória estava bloqueada.
Por fim alcançou o lugar procurado, não sem antes tropeçar numa das mesas que teimosamente continuavam no seu caminho. Nem disposição para dizer o habitual palavrão ele teve.
Sentou na velha cadeira giratória e um desagradável calafrio percorreu seu corpo, de norte a sul. Na penumbra conseguiu ver, escandalizado, que sua calculadora, tamanho grande, não mais estava onde a deixou.
— Quem terá sido o autor desta brincadeira de mau gosto? — pensou sobressaltado Agripino, sem muita convicção de que algum colega pudesse estar ali àquela hora. Tal pensamento servia apenas para enganar-se; não queria imaginar o pior. — Será que errei de mesa? — Mas esta esperança se esvaiu ao verificar que a enorme pilha de papéis continuava lá.
— Por que não saí junto com os outros? Que idiota! Quis ficar para concluir este maldito balancete e assim não perder pontos com o chefe, e veja o que aconteceu — murmurou. Se arrependimento matasse...
Numa fração de segundo, passaram-lhe pela cabeça algumas histórias que lera num livro sobre coisas sobrenaturais. Rechaçou qualquer possibilidade de analogia entre elas e a situação presente. Aquilo tudo era invenção de desocupados. Devia haver uma explicação lógica para o que estava acontecendo, tentou, em vão, convencer-se.
Inerte em sua cadeira, percebeu pelo canto do olho uma espécie de ponto de luz às suas costas. Fraquinha, parecia amarelada. Andou como pôde em direção à tênue claridade, batendo nas mesas e cadeiras, mas quanto mais avançava, mais a claridade se afastava. O pânico estava prestes a se instalar. A luz sumiu.
Com o coração disparando, voltou à escrivaninha. 
— Vou ligar para a companhia de luz, bombeiros ou força pública. Por que não pensaste nisto antes, seu imbecil? — disse para si mesmo.
Com sofreguidão, levantou o telefone do gancho. Já estava discando quando percebeu que não havia sinal. O disco começara a voltar do final de seu curso quando Agripino ouviu, apavorado, uma gargalhada no telefone, ou pelo menos aquele ruído lhe parecera uma. O pânico definitivamente se instalara. O coração parecia chegar à boca.
Súbito uma onda de coragem o invadiu. — Não posso estar enlouquecendo! — Tentou discar novamente e o que ouviu, agora com mais nitidez, foi aquela mesma risada sinistra e obscena de escárnio.
A coragem fugiu com a mesma rapidez com que surgira. Debruçou-se sobre a mesa e, quase às lágrimas, recomeçou a raciocinar de forma atabalhoada. 
— Vou descer as escadas no escuro mesmo. Nada será pior que permanecer nesta sala endemoniada.
Com as pernas frouxas, voltou a dirigir-se para a porta, no fundo da sala. Acostumado à escuridão total, depois que a luz da rua também foi apagada, esbarrou menos no trajeto. 
“Talvez haja alguma claridade do outro lado” — pensou com otimismo. Entretanto o choque foi maior ainda: a porta estava trancada. Não havia chave daquele lado. 
Desesperado, começou a esmurrá-la em busca de socorro. Suas batidas furiosas, entretanto, não geravam qualquer ruído. Tentou gritar, mas nenhum som saía da garganta. Desatinado, correu como pôde ao banheiro, mas a porta também estava trancada. Sentiu o odor desagradável de seu medo.
Sentia-se aniquilado. Nada poderia fazer diante daquela situação de terror. Voltou para a escrivaninha. Tentou como pôde colocar suas idéias em ordem. “Nada de anormal acontecera”, procurou sem muito sucesso convencer-se. 
Por paradoxal que possa parecer, no meio daquele torvelinho de temores e pavores, achou brecha para pensar na diferença entre o débito e o crédito do balancete que o retivera ali, naquela noite e sala malditas.
Agripino achou que chegara ao fundo do poço. Estava enganado. Começou a ouvir uma voz, distante, falando palavras ininteligíveis. Jamais escutara uma língua como aquela. A voz foi aumentando de volume, parecendo que seu emissor se aproximava. 
Uma figura branca, difusa, dava a impressão de que acenava para ele lá do fundo da sala. Nosso herói começou a tremer. Pensou até em suicídio, só para se livrar daqueles horrores. A figura fantasmagórica começou a mover-se em direção a ele, fazendo um ruído de correntes sendo arrastadas num piso de pedra irregular.
— Não! Não! — gritou em tom de súplica — Afaste-se de mim! Tenho esposa e filhos — mentiu ele.
De nada adiantaram seus gritos desesperados. A figura, agora com contornos mais nítidos, se aproximava inexoravelmente. Parecia uma mulher alta, de longos cabelos negros, vestida com uma bata branca que lhe chegava aos pés. A vestimenta apresentava uma longa fenda, deixando ver a nesga generosa de uma perna perfeita. 
Em outras circunstâncias, bem diferentes desta, teria vibrado com a visão desta sedutora parte da anatomia feminina. Não agora. Ela trazia na mão um grande tridente. Netuno, prosaicamente, veio à sua lembrança...
A escuridão não permitia uma visão mais nítida da fisionomia daquela estranha figura. Se amistosa ou hostil. Ela se aproximava a passos lentos, porém firmes. Chegando mais perto, Agripino viu, ou imaginou ver, que a suposta dama tinha chifres e um cavanhaque pontiagudo. A dúvida sobre suas intenções se dissipou. Começou a sentir, apesar de ainda distante, aquele tridente sendo cravado em seu peito.
Suava como nunca. Nem naquela excursão que fizera a escaldante Manaus nos bons tempos da Zona Franca. Sua cabeça girava num torvelinho de pensamentos desencontrados e fora do contexto. Até cenas esdrúxulas de sua distante infância lhe afloraram à mente.
Sentiu-se perdido, arrasado. Quando aquele aterrorizante ser estava a menos de 3 metros da escrivaninha, Agripino não mais resistiu. Desfaleceu e a cabeça tombou sobre o braço estendido no tampo da mesa.
Não sabia quanto tempo se passara, até que a mão forte daquele espectro  sacudiu-o com força.
— Acorda, “seu” Agripino!! O senhor passou a noite dormindo aqui? — perguntou Desdêmona, com um indisfarçável tom de censura na voz. — O patrão está para chegar e o que vai pensar? Vá se recompor antes que cheguem os demais! O senhor está molhado e mal-cheiroso!
Passaram-se alguns segundos até que Agripino saísse do sono letárgico em que imergira e constatasse a realidade. Tudo aquilo não passara de um sonho. Um sonho não, um legítimo pesadelo. A velha Olivetti estava no lugar, como prova de que ele fora abatido inapelavelmente pelo sono. A diferença do balancete, impávida, fazia a contraprova do acontecido.
Saber que tudo o que passara fora apenas um pesadelo foi o segundo acontecimento mais prazeroso de sua vida. Quando se lembrou do primeiro, um leve sorriso aflorou à sua face. Eleutéria. Aquela flor intocada que ele havia, com paixão, arrancado de seus lábios carnudos e sensuais. 
Jurou para si próprio que jamais voltaria a ficar no escritório após o expediente. Nem se Bill Gates ou a Tiazinha lhe suplicassem pessoalmente.
Aproveitando o embalo, jurou também que nunca mais leria obras de Stephen King. Limitar-se-ia a enfastiar-se com os romances água-com-açucar que Ramona, sua terceira e atual esposa, passava as madrugadas lendo com sofreguidão.
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“À Iara, esposa e amiga, pelo permanente incentivo”
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Milton J. Pantaleão conta prêmios em eventos literários, obras editadas em antologias e tem dois livros ainda inéditos. Aprecia vários autores, destacando Arthur Conan Doyle, Agatha Christie, Alexandre Dumas. Victor Hugo, Ian Fleming, Luiz F. Veríssimo, Moacyr Scliar, Raymond Chandler, Stephen King, Jorge Amado, Josué Guimarães e Sidney Sheldon.
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Apoio Cultural: Editora Altenativa Distribuidora de Livros Ltda - Porto Alegre-RS

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