![]() |
Adenisia Lima
São Paulo-SP Era final de inverno. O
velho tio Niná ainda estava usando o seu cachecol de lã
marrom feito pelas habilidosas mãos de sua querida esposa Helena.
Ele tinha 87 anos e era um homem muito bondoso, principalmente comigo. Sempre
que sobrava uma moedinha ele me dava para comprar balas de goma, minhas
favoritas.
Todos os dias após o jantar ele se sentava na varanda da casa, tomava uma xícara de café com manteiga. - A manteiga é para expectorar - dizia ele, e calmamente acendia um cigarro. Aquela cena se repetia todas as noites. Era um ritual que ele seguia religiosamente. Ele consumia aquele cigarro com tanta elegância e prazer que me dava água na boca. Eu ficava observando cada gesto e ao mesmo tempo maquinando um jeito, uma maneira de talvez, um dia, conseguir fumar um cigarro e descobrir que tanto prazer era aquele que ele expressava no rosto. Sabia que seria difícil, pois sempre que ele jogava a bituca de cigarro no chão a destruía, esfregando-a com o seu sapato de pelica. Esta era a pior cena. Mas eu sabia que uma dia conseguiria. Minha mãe sempre me pedia para não ficar muito perto, pois ele era tuberculoso. Mas ela nunca me explicou que doença era aquela. Eu não enxergava nenhum machucado nele! Ela sempre escaldava com água quente o prato e os talheres que ele usava. Eu não entendia, mas achava que ela fazia isto porque ele não gostava muito de escovar os dentes; dentes estes que todas as noites antes de dormir ele mergulhava num copo de vidro com água. O cigarro já estava no fim. A cada tragada ele olhava para o céu e suavemente soltava a fumaça pelas narinas enrugadas e cheias de pêlos. Não sei o que ele procurava. Estrelas, santos ou bichos? Bichos não eram. Eles só aparecem durante o dia quando há muitas nuvens. Ele deu a última tragada ( era a última mesmo) e, como de costume, jogou a bituca no chão. Mas para minha surpresa ele não a destruiu. Era minha chance, pensei. Agora era só eu esperar ele ir embora para o quarto e devorar aquela bituca. Calmamente ele se levantou e, tossindo muito, falou: - Boa noite filha. Vá para o seu quarto dormir antes que sua mãe apareça e lhe dê um “couro”. - Boa noite tio, a sua benção. - Deus te faça feliz - respondeu ele, arrastando aquele corpo magro. Não pensei duas vezes. Esperei ele entrar e peguei a bituca que já estava quase apagando. Corri para trás da casa. Coloquei a bituca entre os minúsculos dedos anular e indicador, levei-a até a boca e dei uma tragada olhando para o céu. Não consegui vernada, além das estrelas que foram cúmplices daquele delito. Na segunda tragada engasguei. Os olhos começaram a lacrimejar e uma tosse escandalosa despertou minha mãe, que já estava à minha procura. - Sua peste! - gritava ela puxando minha orelha. - Você vai morrer! Seu tio é doente, doença incurável. Eu não sabia se chorava de dor ou de tristeza por não ter concluído a segunda tragada. Quando entramos dentro de casa, ela me sentou numa cadeira e me obrigou a chupar alguns limões. - Estes limões vão cortar a doença . – gritava ela. Naquela noite fiquei com muita raiva de minha mãe e com muito medo de morrer, pois morrendo não teria novamente a chance de fumar. Os limões estavam muito azedos e meu rosto era uma careta só. - Agora vá dormir. Eu vou rezar muito para você não morrer. Fui para o quarto chorando. No dia seguinte acordei com um barulho estranho que atravessava as paredes. A impressão era que muitas pessoas falavam ao mesmo tempo. Eu ouvia um choro triste. Levantei rápido e fui ver o que tinha acontecido. Minha mãe ainda estava de camisola e toda despenteada. Fui chegando devagar e perguntei: - Mamãe, o que aconteceu? O que esta gente está fazendo aqui? Mamãe me olhou, me abraçou e entre soluços falou: - Tio Niná morreu. Ela me apertava tanto que mal conseguia respirar. Desgrudei seus braços do meu corpo e as lágrimas começaram a molhar meu rosto assustado. Fui para o quarto, deitei novamente na cama, me cobri com os lençóis de retalhos coloridos, encolhi o corpo trazendo os joelhos até o peito e no meu pesar fiquei esperando a minha vez chegar. ***
*** Adenísia Marinheiro de Lima é contista selecionada em vários eventos
. Sua temática reflete sua observação do cotidiano,
das coisas, dos lugares, das pessoas, usos e costumes, com desfecho eloqüente
ao tema. Facilita a imersão do leitor para dentro da ficção
pois retrata fielmente o ambiente e a ação dos personagens.
Apoio Cultural: Associação dos Funcionários das Organizações Safra ***
|
![]() |