Alyne Maria Dória
Belo Horizonte - MG A única
vida ali permanecia a cantar sua música triste de gaiola. Permanecia
inerte e alheia no reflexo daquele limbo escultural de cimento, duro e altivo.
E assim se passavam as horas, os dias, os anos... Nada para se inspirar, só
a poeira alergênica dos carros confusos a desfilar pela avenida em
busca dum quê. Do quê será? Ai, que curiosidade interiorana,
de braços escorados na janela!
E os olhos daqueles seres de cimento, sempre fechados, nem a olhar e nem a mostrar nada. Fechavam a sua vida e fechavam-se para a vida. Então bateu a fome de dar vida àqueles monstros adormecidos e a imaginação dobrou a esquina, cruzou a rua e ficou a espiar... Funcionavam sim! Era um coquetel de vidas enlatadas. A dificuldade era descobri-las individuais se os sons produzidos eram um arroto gigante. Daí o instinto deu conta que podia peneirar as informações e criou vida para o concreto vizinho. E a imagem se fez primeiro xadrezinha... e xadrezinho era o olhar porque tinha criança, que devia ser pequenina porque não se ouvia gritos e sim gritinhos e choros-chorinhos-chorosos e brinquedos com alma de música. Mas era xadrezinho porque havia criança que não podia voar. Embaixo havia uma mãe loirinha com três filhinhos loirinhos também. Todos os dias, ao cair da noitinha, na hora d’Ave Maria, reuniam-se na mesa e comiam pão com não sei o quê e tomavam suco. Parecia tudo tão triste. E tinha passarinho loirinho lá também, e cantava, mas na hora que ninguém estava, então não adiantava. Ao lado, moravam os jabuticabinhas, taciturnos tais e qual gente que acredita em tudo. Cá mais perto, a doninha do vestido rosa, franzina, a colecionar mudinhas de chá pra isso, chá pr’aquilo, toda hipo escondia cá. E lá os seus remediquinhos. Aind’eu ficava a pensar o que tinha naquele olhar de baixo. Um grande livro de capa azul, escrito em ouro que ficava a moça a cutucar diarianoitemente, dia e noite. Mente em quê? Corridos, os olhos deram conta daquela velha máquina registradora, aposentada no canto a tomar a brisa da tarde, contabilizando os anos idos. Incontáveis. Centavos e réis e cruzeiros e cruzados. Tossidos, reclamações de pouca féria. Férias então para ela, ré culpada da ferida no bolso do dono. Puro Mico. Soft. Há! Um dia ele descobriria. A imaginação voltou da rua. Está na janela e vê a imagem a olhando. Descobre que também faz parte daquilo. E como um pauzinho de fósforo na caixinha, doido pra pegar fogo e dar mais vida àquela realidade encaixada. *** Alyne Maria Dória é autora com atividade literária elogiada
desde os bancos escolares. O amor pela literatura e por sua literariedade
diz dever a Machado de Assis, José de Alencar, Fernando Pessoa, Camões,
Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles e a Clarice Lispector,
de quem guarda a frase: “ Escrever é procurar entender, é procurar
reproduzir o irreproduzível, é sentir até o fim o sentimento
que permaneceria vago e sufocador.”
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