Jorge Gomes da Silva
Moscavide - Portugal A porta do armário
não abriu. Nem a murro. Decidiu então sair sem se barbear. Num
Domingo, acabaria por ser questão de pouca monta. Mas acabou por lhe
estragar o bom humor com que acordara.
Quase correu para o carro quando se apercebeu da bizarra criatura que se aproximava. Premiu ansiosamente o comando do fecho centralizado, mas nada aconteceu. A pilha acabara ali os seus dias. Teve de aturar a habitual ladainha acerca de factos sobrenaturais e charlatanices diversas que o vizinho de cima, o “bruxo”, despejava sobre quem se-lhe atravessava no caminho. Nessa manhã, o tema incidia sobre sinais premonitórios. Nervoso, ia tentando abrir a porta da viatura com a chave, enquanto balbuciava desculpas de ocasião e “urgentíssimos afazeres”. Só queria livrar-se do maluco. Acabou por partir a chave. O carro ficaria fechado, nessa linda manhã de Primavera. Meteu-se ao caminho, cuspindo impropérios. Seria um esticão, feito a pé, mas nada o faria perder a sessão semanal do seu desporto favorito. Quando virou, na outra ponta da rua, ouvia ainda o profeta do apocalipse, castigando sem piedade o paciente contabilista do sétimo esquerdo. A caminhada acalmou-o. Respirou fundo e apreciou a paz que envolvia o bairro. Aqui e além, crianças brincavam felizes. Reparou num menino que tentava sem sucesso despir o blusão. Abordou-o, confiante, para a boa acção do dia. Bem se esforçou, mas o fecho eclair, encravado, não abriu. Ficou, figura de parvo, com a patilha partida entre os dedos. No resto do caminho, o choro convulsivo do petiz martelou-lhe a consciência. O calor apertava. Decidiu matar a sede na máquina da esquina, com uma lata de sumo fresquinho. Partiu uma unha, somou mais uma patilha perdida entre mãos. E projectou contra a vedação de arame uma lata por abrir. Rosnou cumprimentos quando entrou no vestiário. Bufava, possesso. Sedento, nem assim se atreveu a tentar abrir a torneira, certo de mais um fiasco nesse dia de cão. Pegou no equipamento e seguiu o instrutor, sem proferir um som. A cada passo, foi concluindo que azar tem limites e auto-injectou-se de precioso optimismo. O sorriso deliciado pelo vento frio no rosto morreu-lhe nos lábios. Porque diabo se havia de lembrar do “bruxo” num momento daqueles, interrogou-se, enquanto enfiava o indicador na anilha de abertura do pára-quedas... “Ao fogo
fátuo que me tem iluminado o caminho no labirinto das palavras que
amo percorrer. E à (mara)filha que fizemos, a quem deixo o que sou
nas entrelinhas dos meus legados em papel”
*** |