Dúvida (i)mortal
          Claude Faria                
                           Florianópolis - SC                    

 “ A imaginação é como o sonho de Adão - ele acordou e descobriu que era verdade”. ( John Keats)

Meu nome é ( ou era?) Adão. Adão José Nepomuceno. Um dia acordei e descobri que estava morto. Não me lembro bem quando aconteceu, mortos não têm boa memória. Pode ter sido ontem, há um mês, um ano. O fato é que morri, mas, que eu me lembre, não doeu. Pelo menos não uma dor que tenha doído. Algumas dores  doem, outras não. E ainda há as que não fazem sentido: apenas existem para encher o nosso saco e zombar da sapiência médica. 
Ainda vivo, já faz tempo (muito?), me cortei tentando descascar uma melancia (como é que me lembro disso?). Talho profundo, expôs os tecidos moles e aquele osso bem branco. Corri ao hospital. Não gritei nem gemi. Ver todo aquele sangue escorrendo me anestesiou. 
Talvez o mesmo tenha acontecido quando morri. Sempre houvera deitado vivo e acordado vivo. Desta vez foi diferente. Deitei vivo e acordei  morto, sem sentir. Desconfio que foi alguma coisa que eu comi, ou que deixei de comer.
Andava ruim por dentro, mas não pensei que fosse tão grave. No começo eram apenas os gases, flatulência indiscreta. Pior a vergonha que o cheiro. Depois, aquela queimação que não tinha fim, meu estômago parecia a ante-sala do inferno (que talvez venha a ser minha morada definitiva, só que, até agora, ninguém me comunicou).
Fui consultar um médico. Perguntas de sempre, mandou-me deitar na maca e me apalpou toda a região abdominal, após o que chamou uma enfermeira com uma seringa entre os dedos. A moça me garroteou o braço e passou um algodão com álcool no traçado nítido de uma veia bem saliente e azulada.  
Implorei pra não dormir, mas o doutor não quis saber. - É pra você não ficar agitado e estragar o exame, resmungou o esculápio.  Senti a picada e uma ardência irritante, olhei para a enfermeira gostosa mas não a xinguei, pensando cá comigo que se fosse um marmanjo eu o teria mandado ir procurar sua mãe na casa de tolerância mais próxima.
Apaguei, fui devidamente entubado (ou acho que fui, a consulta era pelo convênio) e examinado. Acordei bem vivo pra ouvir o diagnóstico: - É uma duodenite aguda, mas já vi coisa pior. - Tem cura, doutor? 
Tinha cura. A bactéria ostentava um nome grande e pomposo: helicobacter pilori. O bicho devia ter hélices e ascendência italiana. E uma bosta de uma índole incendiária. 
O doutor falou que era só parar de comer e beber, e tomar antibiótico. Ou tomar antibiótico e parar de comer e beber. Não me lembro bem, e parece que agora já não faz muita diferença. Aviada a receita, aperto de mão e um grito: - O próximo!  
Por uns tempos parei de comer. Não foi difícil. O mundo está cheio de gente que não come mas continua viva. A medicina que o diga  (e que se dane). Hematócrito vinte e os caras fazendo um filho atrás do outro. Barriga vazia aumenta a fertilidade; a minha continuava doendo, mesmo vazia. Como já houvera dado minha contribuição definitiva para a continuidade da espécie humana, não tive outro jeito: voltei a comer.  Senão teria morrido antes de ter ido dormir vivo para depois acordar morto. 
Parar de beber foi mais difícil. Suspendi o vinho e comecei a abusar da água, duas, três vezes ao dia! Não era fácil sentir aquele líquido nojento escorrendo pra dentro, me dava ânsias de vômito. 
Pra tentar seguir direitinho a ordem médica, eu fechava os olhos e imaginava que, à medida que ia descendo garganta abaixo, a água se transformava em vinho. 
A idéia não foi minha, nem era nova. Um certo judeu da Galiléia parece que já fazia isto há muito tempo, pelo menos é o que consta dos registros oficiais. Mas há outra versão, que, quando eu estava vivo, sempre me pareceu mais verossímil. E muito mais crível me parece agora, quando já estou morto. Do lado de cá ouvem-se muitos comentários...
O sujeito era candidato a profeta e, certa ocasião, fazia um comício para mais de mil eleitores. Já tinham bebido todas. O líder da comunidade chamou o candidato a um canto e deu-lhe o ultimato: - Ou Vossa Excelência arranja mais vinho, ou perde os votos para o Pilatos, que, só na semana passada, prometeu pão e circo de graça, além de água encanada.  
Num colégio eleitoral pequeno como o da Galiléia, não havia outra alternativa. O galileu-candidato-a-profeta subiu em uma mesa, pediu silêncio e começou a proferir frases num linguajar difícil, hermético, enquanto fazia lentos acenos de mão, como se estivesse a se abanar. Coisas místicas e incompreensíveis para o populacho. 
Como os eleitores, àquela altura, já estivessem todos ébrios, ninguém viu os doze cabos eleitorais do galileu entrar com as pipas de vinho pela porta dos fundos para substituir as que continham água. O milagre foi feito, o sujeito se elegeu e o resto é história. 
Eu nunca fui candidato a profeta ou a qualquer coisa que tivesse valido a pena. Quando era vivo, parece que só falava coisas compreensíveis - embora inúteis. Agora estou morto. E nem sei de que. Se de fome, de sede ou da tal bactéria com nome estrangeiro. 

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“Ao meu pai, pelo exemplo da leitura para a leitura dos exemplos”
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Claude Pasteur de Andrade Faria tem obras já publicadas em antologias, artigos e crônicas publicadas em boletins de associações de classe e seu gosto literário é para os contos e obras de divulgação cientifica como astronomia, cosmologia e evolução das ciências naturaisl. Entre os contistas, destaca Edgar Allan Poe e Mark Twain..
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