O medo é inimigo da mente
           Gustavo  Goulart          
          Belo Horizonte - MG              

Devo me apresentar? Creio que não. Apesar de sermos únicos, vejo que somos capítulos de histórias que se repetem ao longo dos séculos. Meu nome não importa. Pois que o que se passa comigo, pode ser espelhos de muitos e nomear-me seria nos trair...mas vamos começar...  Entro nesse enorme salão e não conheço ninguém. Finjo ser senhor de mim mesmo e arcanjo da noite como se toda a sua imensidão me pertencesse. Quem é essa mulher dona de todos os olhares? Desliza como uma nuvem em seu longo vestido e não pertence a ninguém...”nem mesmo a mim” penso, como se isso fosse uma lei que ela violasse. Não ouso trocar olhares mas já me era tarde...primeiro sua boca com um sorriso lindo...a voz que eu não podia ouvir mas que inebriava meus ouvidos só pela emoção de um dia poder ouvi-la...cabelos negros como o abismo a se abrir sob meus pés...e, finalmente, os olhos verdes que, então, me atravessaram mortalmente. “No survivors.In vino veritas” e degustava o vinho como minha última estrutura antes de um desabamento. A música percorria meus sentidos e quando vi que ela dançava já não podia mais desviar meus olhos...já não podia mais desviar a mim dela.”Porque ela ainda olhava para mim?” pensava aflito...”Não sabe que já sou mais um de seus inimigos abatidos? Que estou fora de combate, combalido em sua arena, vassalo de seus comandos?”A música fluía mais intensa só porque ela dançava e isso já era uma condição única...”Como pode haver conjunto mais perfeito?   Parece-me que foi feita essa música para que ela dance!”Cumprimentava várias pessoas que não conhecia para mostrar que era conhecido...e vagava pelos cantos do salão. “Tenho que me afastar dela pois amanhã serei amigo da dor”. Eu, então, parava e me perguntava o que fazia ali...como eu tinha chegado ali eu bem sabia...mas porque? Não sabia aonde mais ir depois...as portas estavam abertas mas jamais poderia escolher alguma...eu sabia...e essa música...lá estava ela de novo...procurei por seus olhos para ver se haviam sentido a minha ausência...nada, a mesma intensidade e essência como se eu importasse ...ou não. Olhei-a sorrindo como que dizendo, “não vê que sou seu hipnotizado?...que basta apenas um gesto para que eu me atire contra os leões dos quais fujo em meus sonhos?”Minha pergunta se dissolveu numa espécie de gargalhada como se ela tivesse entendido tudo. “Meu Deus! É mais grave do que penso! Essa mulher não deve existir! Preciso tocá-la, isso não pode ser possível!”Com efeito, fui aos poucos me aproximando dela...e como rainha soberana, fez pouco dos meus movimentos. Nem notou quando estava bem a seu lado...”estou pronto para tomá-la em meus braços!” e levemente toquei seu quadril como um gesto casual de um transeunte. Foi a glória e rapidamente, como uma criança, me afastei do objeto que era uma mistura de mistério e prazer...”pareço um menino de trinta anos” repeti comigo mesmo como se conversasse com alguém.
A noite já corria mais veloz e eu me envolvia com minha taça de vinho. Aterrorizado na minha perambulação notei que ela havia desaparecido. “Seu marido deve tê-la buscado e me privou de meu estranho espetáculo.” Percebi como nunca que estava só. Desde o dia que havia nascido até tê-la conhecido...e que ficaria assim por muito mais tempo. Aliviado, respirei cansado quando a vi sentada...falando coisas tão veementes que entendi que eram as coisas mais importantes do mundo para mim embora ignorasse por completo seu conteúdo. Que diferença fazia isso? Nada mais me importava senão o frescor de saber da sua existência. Isso bastaria tanto a meus sonhos quanto a mim e até me senti feliz. E sentei-me um pouco longe como se soubesse que ela viria me procurar.O dia já vai quase amanhecendo e quase nada acontecendo.   Penso que ela precisa ir embora para me libertar...e sua demora em partir parece me ser um convite para agir. Mas estou paralisado e quando consigo cruzar nossos olhares novamente transpareço um “por favor! me mate!” e lá vem seu sorriso de novo...”ela entende tudo... tudo... tudo...nunca mais poderei me esconder dela, nem atrás de mim mesmo muito menos atrás do que pensam que sou...”A festa acabou, mas ainda tenho a sensação de que posso voltar ao salão a qualquer momento...estaria num trem ou num metrô? Não sei...só sei que vão muitas pessoas juntas e não conheço ninguém e nem sei mais de nada. Espero que desça na estação certa...siga o fluxo, é o que diriam. Saiba o tempo, é o que eu diria.
 Lembrando da festa no dia seguinte, diferentes ambientes, estranhos entre si deslizavam 
em minha mente...teria ido a duas festas diferentes? Levantei-me lentamente, a consciência sem
ainda ocupar seu lugar. Fiz um esforço para iniciar qualquer coisa pequena que me inserisse na
realidade. Pequei o despertador e o desliguei antes que o alarme disparasse. Faltava muito
tempo ainda. Faltava alguma coisa. Faltava abrir a janela. A luz e um pouco de tempo fizeram as
coisas se encaixarem. Estava apenas sonhando. Não havia nenhum salão, nem festa. Quer dizer,
não aquela festa. Tinha ido a uma reunião de amigos onde havia pessoas que eu não conhecia.
 Conheci Valquíria nessa festa. Não sei se poderia dizer que a conheci pois só o que aconteceu foi a devastação que sua presença causou em mim. Sentir-se apaixonado seria pouco para traduzir o momento em que fui ferido quando seus olhos me atravessaram. Sem ter trocado qualquer palavra com ela, não me custou perceber-me hipnotizado...e sua existência tornou-se mais importante que a minha...e sua vida era minha obsessão. 
 Pensar isso me causou tal arrepio que fui de encontro ao pensar.
 Parei, então, na janela e vi que estava olhando mesmo para fora (não para dentro) e comecei a discorrer pela paisagem de prédios. Mas, de fato, não estava me centrando neles. E, tanto que, me invadiu completamente a sensação de falta de sentido pra aquilo tudo. Mas ali estavam tantos prédios de concreto e sólidos e indiferentes como se me simbolizassem a existência de vida fora da minha concepção de vida. Algo que, alheio a mim, se impunha ignorando-me como meu referencial. Se isso fosse pouco (pois é muito destrutivo já que é a base primária da estabilidade) eu não me sentiria ameaçado.
 A efemeridade, porém, me assusta ao mesmo tempo em que consola. A sensação, aos poucos, vai desaparecendo e podemos crer que retornemos aos nossos meios basais de relação. Estamos, assim, prontos a operar segundo algum padrão de normalidade.
 Então, me pergunto porque a vida e as coisas se impõem assim ou se sou eu que as imponho dessa forma para mim. Mas posso eu tanto? E, seu eu posso tanto, porque não impor isso de uma forma diferente? É quando sei e me julgo pequeno e fragilmente à mercê dessa luta desigual em busca da satisfação feita de pequenas alegrias e estrondosas derrotas. Só me torturo agudamente por observar esse padrão e me confessar incapaz de subjugá-lo. Temo todos os dias de ter chegado o momento em que serei incapaz de suportar ( e creio que sou muito resistente para esses distúrbios deflagrados e dos quais sou contínuo prisioneiro). Mas há sempre os limites...a vida é sempre constante e eu não...a vida pode ou não mudar mas até quando eu também?
 Ser parte de um processo não implica pertencer a ele. Quanto maior a capacidade de adaptação maiores as chances de acompanhá-lo...mas, mesmo para os felizes, grandes adaptadores, não escapam da morte,  golpe final implacável que reduz sucedidos e fracassados à singularidade do nada.
 Foi quando eu saí da janela e sentei na cama e abortei imediatamente isso tudo. Lá fiquei até a hora de ir embora, pensando trivialidades e, até tranqüilo. Na hora de sair, olhei, assim, para a janela meio que sorrindo e achando graça daquele momentâneo portal que, por mais mágico que pudesse ser, continuava ali como uma mera janela. Foi, então, que eu inocentei essa janela por tudo isso. Mas vou carregar para sempre essa janela comigo.
Através de um amigo, consegui o telefone dela. Antes que pudesse avaliar qual loucura me tomava, ligar sem assunto para uma pessoa que me ignorava ou adiar um contato que minha alma urgia como inadiável, ouvi o primeiro toque no telefone. Era hora do destino tomar as rédeas de tudo. Uma voz atendeu e eu sabia que era sua voz. Em poucos minutos, ela já ria do absurdo da situação e ela se lembrou de mim. “Obviamente, ela está mentindo”, pensei. “Mas não havia tantas pessoas assim”, me consolei. Então, perguntei se ela gostaria de se encontrar comigo.
- Estou indo agora para Búzios, ela disse, quem sabe na volta?
Iniciei um silêncio eterno, divagando se aquilo era um fora ou o princípio de tudo. Tomado por algum espírito arrojado que deve ter tido compaixão da minha falta de presença de espírito, soltei as seguintes palavras:
- Você não vai acreditar, mas estou indo para lá também...
- É mesmo?!
- Sim! respondi e “Não”, pensei comigo mesmo.
- Bem, me ligue no celular quando chegar lá! Desculpe-me, mas tenho que resolver um 
monte de coisas! Um beijo!
            Demorei a responder a seu beijo e ela já tinha desligado o telefone. Percebi que o espírito já tinha ido embora.
             Improvisando motivos escusos, fui na mesma noite para Búzios, para a casa de um parente. Chegando lá, liguei imediatamente e, para minha surpresa, ela atendeu ao telefone. Combinamos de nos encontrarmos na minha casa no dia seguinte.
          O domingo se apresentava cinza e uma pequena brisa soprava do mar. Sutil mas presente como se quisesse ser um lembrete. “Ela vem hoje”.É claro que existia uma ansiedade e novamente se deflagraram todos os pensamentos possíveis. “Um motor parado jamais pode ter seu desempenho avaliado; pode ser estimado, mas avaliado, nunca!” Esse pensamento se tornava óbvio porque uma engrenagem estava funcionando...”Ela vem hoje” Mas como poderia se ter certeza disso? De onde vinha essa convicção? O mar estava estranhamente tranqüilo para as hostilidades das nuvens carregadas. É claro que isso poderia estar influenciando o tom da espera...não foi difícil perceber que nada da realidade que acontecesse mobilizaria mais do que essa espera. “Mas porque isso me mobiliza tanto?” Os olhos se voltaram para o mar numa tentativa inútil de se contemplar sua amplidão como se fosse uma garantia de fuga. “Ela já deve estar a caminho, a engrenagem já foi acionada.” Novamente, uma série de obrigações práticas puderem mudar o foco dos pensamentos. Mas não foi fácil executá-las.A espera de momentos especiais é sempre intensa. O tempo psicológico impera sobre o cronológico e as emoções ficam mais indóceis...”Devo entender que o processo faz parte de mim, não eu que faço parte do processo.” Todas as avaliações racionais puderam ser apreciadas enquanto o tempo passava e sua chegada tornava-se cada vez menos provável. “Devo entender que partilhamos os mesmos motivos. A minha espera também é a dela. E o julgamento tem um júri no qual ambos participam.”   O tempo finalmente deu seu veredicto e a chuva se instalou. Agora, já não era mais possível que ela viesse e se deveria avaliar todas as implicações disso. Começou a se lembrar do começo da manhã e um sorriso surgiu ante a ansiedade que não podia ser escondida. Percorreu todas as suas divagações e re-testou todas as hipóteses querendo procurar qual delas se aplicaria melhor a tudo. Finalmente, sentou-se e se sentiu cansado. Mas já não existia mais o desconhecido e isso trouxe a tranqüilidade. “Porque que ela não veio?” Sentia-se pequeno por não poder responder uma simples pergunta e tremeu ao pensar que ela jamais poderia ser respondida. “Lembre-se dos entroncamentos e das vias. A escolha sempre pode ser mudada desde que não se ande muito no caminho escolhido.” Então, foi conseguido o contato. “Quero ver o que vai dizer, e mostrar uma postura neutra para que ela seja o mais verdadeira possível.”
 Mas antes da ligação já se tinha o veredicto...
 Sua voz no telefone era vacilante. Mas ela foi clara e objetiva.
 - Sabe, fiquei um pouco com medo de te encontrar...Passei o dia pensando...além de um rosto numa noite, quem na verdade é você?
Um novo eterno silêncio se instalou...o que eu poderia dizer, que fizesse diferença?
- Quer saber mesmo? emendei em tom de súplica...
- Quero!
-  Bem, tomei fôlego...Pareço sério? Sou sério. Pareço certo? Sou certo. Mas, no final, acho que não somos ninguém mesmo, ainda mais aqui...e quem sou eu, então? Quem sabe, um observador...verificando as expressões da mente e possibilitado de intervir se necessário. Buscando achar do comum algo diferente, do trivial uma circunstância que possa mudar...um passageiro impaciente que não se contenta com a janela mas está sentado no corredor. Uma pulsão incontrolável que se restringe a um olhar. Uma boca aberta ao grito mas que só se faz respirar. Um vento que muda de dia, à noite um fogo que não esquenta mas ilumina...um cheiro doce que não faz ninguém perguntar. E as árvores continuam o seu não continuar. Lento despertar para logo deitar. Quem somos se não essa indefinição tão previsível e tão certa e tão breve que ninguém se incomoda e tão longa que ninguém consegue agüentar... os outros são iguais e às vezes tão iguais que a gente pensa que é por isso que somos diferentes...  Mas a gente é tão igual também que eles nos acham estranhos...até que a noite venha como uma longínqua lembrança, como um frio que aconchega, como um rio que murmura, com um surto que impressiona...que distorça o dia e nos mude para ser o ontem de hoje...Eu fico quase que pensando e ando até parando, assim, quieto e meio triste mas com os olhos fortes, perscrutando, perturbando o espaço em volta.
 Acho que a ligação caiu em algum momento dessa fala, ou sua bateria acabou. A verdade é que, no final, o telefone estava mudo. Fiquei parado no tempo...
 Achei que chovia...mas não chovia...e que diferença fazia se chovesse?
 Apenas queria que a chuva fosse tudo que eu queria...Mas como o que eu queria não vinha, eu queria que chovesse...Mas nem a chuva vinha, nem vinha o que eu queria.
 Então, e se chovesse? Que diferença fazia?
 Faria da chuva que vinha aquilo que eu queria. Ah, se chovesse...me faria feliz pelo que não tinha e que não vinha...porque faria a chuva minha, a chuva que vinha, a chuva que eu tinha...
 E pensei tanto na chuva que esqueci de ver se chovia....
 Fios de pensamento querendo ter consistência... mas nada mais consistente  que um vazio de antes, de agora e de sempre.
 Fui para a cama e tentei dormir...A insônia é o fio de sangue que escorre da alma da gente que sai de dentro e leva o sono... e o que fica fora, leva a gente. O sono de fora espera o dia, a noite que passa fica fora. Por dentro a gente vê o que não devia e põe pra fora quando não é mais hora. O dia termina a noite que não acaba e coloca horário no que não tem fim.    Mas resta aquele eterno cansaço. Lembrança constante que trago em mim. Eu sei como tudo isso acaba e acho graça que seja assim: que o saber não me afasta do ignorado e chego do mesmo jeito sem evitar esse fim! Nunca mais vi Valquíria.
***
Gustavo Costa Goulart tem no contato com escritores como Fernando Pessoa, Machado de Assis, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Frank Herbert, Goethe e Kundera sua maior motivação para escrever. Entende que a literatura é um meio sublime para que o ser humano exercite sua individualidade de forma a transcender a si próprio em direção ao outro.
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