O anel e o caixão do morto
               Ricardo Amatucci          
              Osasco - SP                 

Sempre sinto essa agonia quando estão para fechar o caixão de um morto. Diante da possibilidade, mesmo sabendo remota, de que o morto não esteja gozando  seu pleno direito ao descanso eterno, fico imaginando: de uma hora para outra ele vai levantar sua mão e impedir que fechem a tampa. Ou pior. Depois de enterrado é que ele vai bater na tampa e ninguém vai ouvir. 
Isso aconteceu também no velório do Fernando. De nada adiantaram os cafés adoçados ao extremo “porque adoçam a vida dos parentes, você quer, tome mais um”, ou as desconversas na rua com a desculpa de fumar um cigarro, se nem o choro agudo da viúva me tirava aquele pensamento. Acho que a única hora em que me distraí, foi quando lembrei de ver se o haviam de enterrar com o velho anel de prata que ele sempre usava.
Conheci Fernando na escola, no ginásio, e o que realmente nos fez amigos foram duas coisas para as quais seríamos capazes de dar nossas vidas: jogar futebol no corredor da escola com tampinha de refrigerante e bater figurinhas. Bater bafo, como dizíamos. E foi em uma dessas disputas de figurinhas que ele ganhou o tal anel que não tirava do dedo por nada. Alguém que não tinha a figurinha que disse que tinha ou algo assim e pronto: lá estava o anel substituindo a dívida. Era um anel esquisito, parecia antigo. E logo ficamos na dúvida “porque, o que faria um anel antigo, de prata, e por conseqüência valioso, nas mãos de uma criança com idade de bater figurinhas pelo chão?” 
- E se for do pai, ou do avô?  E se for antigo, antigo mesmo, daqueles de outros tempos? E se for mesmo valioso? E se tiver sido tirado de um morto e der sorte.  Ou azar? 
Bem, ninguém mandou oferecer na troca ... e acabou ficando com ele e veríamos o que aconteceria.
Quando cresceu de engordar o dedo, mandou um joalheiro aumentar o anel para que servisse. Não que fosse bonito, “é um símbolo de vitória. E me traz diversão sempre que lembro que é metade seu ... Mas a sua metade é o vazio de dentro” - me dizia sempre. E ria.
Já não perguntaram se eu queria quando serviram outra vez o café. Bebi como me serviram, sem perguntar a mim mesmo se estava com  vontade. Não é assim que tomamos tantas decisões na vida? 
Então lembrei do anel. E ante olhares de estranhamento dos presentes, fui até Fernando morto, peguei em sua mão, tirei-lhe o anel do dedo e enfiei no bolso da calça.
E não sei bem como, ainda tive o expediente de explicar:
- O vazio do anel é meu. Sempre foi ... Só agora entendi como preenchê-lo...
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“Ao vovô Gino, que me apresentou uma linotipo, a mesa de tipos e o cheiro da tinta fresca dos jornais”.
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Ricardo Amatucci, neto do jornalista Gino Amatucci (i.m.) que foi fundador de jornais em Itápolis, Ibitinga, Taquaritinga, Novo Horizonte e Borborema, escreve nas horas vagas. Arte-educador, pedagogo, músico e ator, participou da 17ª Bienal Internacional de Arte de São Paulo, no trabalho do artista plástico e multimeios Arthur Matuck, como músico e ator.
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