Complexo de Kafka
        Roberto Márcio Pimenta  
                Belo Horizonte - MG          

O burburinho mesclava-se ao som dos copos de vodka sobre as mesas e o dos passos  sobre a tábua corrida. Na vitrola tocava “ Whisky a Go-Go”. O movimento dos corpos  estagnava a presença de George.  Notava-se que já assimilava os primeiros sintomas do álcool:  pronunciava alguns sons guturais e suas pernas já não suportavam o peso do corpo. Dir-se-ia que estava dominado pelo deus Baco. Algo deveria ser feito. Deveriam escondê-lo antes que Maria Teresa o encontrasse. Inseriram-no em um quarto de onde, pela porta semi-aberta, poderia ver todos movimentos dos transeuntes. Ao longe percebia a presença da amada...  Permanecia assentado  sobre uma perna, um braço apoiado sobre o sofá e o outro, com certo incômodo, sustentava a cabeça.. Pelo seu campo visual, embora restrito, podia perceber a barata que saíra da cozinha e  caminhara até deter-se no salão. Seu foco visual restringia-se a dois ângulos: no nível inferior -  a barata, no superior - Maria Teresa dançando. A bebida ofuscava-lhe a razão.  Sua vista começava a ficar opaca e a figura da moça adquiria um tom marrom enquanto a barata a cor rosada. Apertara a vista, esfregara os olhos e ela, a garota, já possuía uma pele grossa. Sobre sua cabeça apontavam duas hastes e já não existiam braços e pernas, apenas tentáculos peludos. A barata afinara a cintura  aumentando as ancas que balançavam ao som da música. Ainda era uma transmutação.
 George sente uma forte depressão e queixa-se dos amigos, da namorada. Novamente retorna seu foco visual  à cena anterior. Sua namorada já havia adquirido asas e o corpo separado por gomos. O ortóptero onívoro  percebe sua solidão e lhe sorri. Caminha em sua direção deixando à mostra as pernas. Já não era uma transmutação. Era uma tentação.
 - Barata, você é um barato! Só você pode me entender. Meus amigos abandonaram-me. Onde estão o Júnior, o Pedro e o Ricardo? Viu? Só porque bebi um pouquinho... 
  O inseto permanece estático ouvindo seus argumentos. A barata novamente lhe sorri, deixa cair os cabelos no rosto e faz um olhar de apaixonada. Ele vacila. Dirige seu olhar para o salão e vê aquele monstro, Maria Teresa, se arrastando na pista de dança. Imagina que alguém possa pisá-la, mas não reage. 
 Obedece aos seus instintos carnais. Lentamente, se despe e aos poucos vai retirando a roupa da barata. 

 Momentos depois...

 Junior, Pedro e Ricardo abrem a porta e encontram George totalmente nu com uma barata passeando no seu corpo.

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“Aos filhos Roberta, Junior e Diego, esposa Sandra Scala, pais, irmãos e amigos”
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Roberto Márcio Pimenta tem vasto curriculum no trato da língua portuguesa, inclusive, como revisor de vários autores. Tem contos premiados em concursos e tem como autores preferidos Machado de Assis, Kafka, Drummond, Vinícius , Pablo Neruda, Pignatari e Manoel Bandeira, com destaque para Gabriel Garcia Marquez  sobretudo pelo livro “Cem anos de solidão”.  É colecionador de antigüidades, livros e quadros.
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