Romildo Guerrante
Rio de Janeiro-RJ A família se reunia
toda noite pra jogar baralho na sala da velha casa carcomida, de pilares
de madeira roídos pelo tempo e pelos ratos. No meio de um jogo desses,
a mãe, que ficava na cozinha fazendo o rescaldo do jantar, chegou
assustada e anunciou que tinha visto uma cobra dentro da lata de açúcar.
O pai não quis acreditar,
mas foi lá ver e voltou às gargalhadas: a cobra era apenas
uma estria sinuosa provocada no açúcar pelo calor do fogão
na lata esquecida muito perto da trempe.
A mãe virou alvo
de gozação durante muito tempo por causa da cobra de açúcar.
E a vida seguiu difícil como sempre foi para eles. Um dia era sardinha
com macarrão, outro dia era sobra de angu com couve, à noite
sempre uma sopinha de osso. E horas na máquina de costura para remendar
os uniformes escolares.
Certa noite, o gato veio da cozinha todo arrepiado, anunciando alguma coisa errada por lá. A mãe, criada na roça no meio de bichos, foi lá e voltou de olhos arregalados. Havia uma cobra jararaca na cozinha, não na lata de açúcar, mas debaixo da pia, e estava bebendo água na bacia. Montou-se uma operação
para proteger as crianças, que foram trancadas no quarto mais distante
de tudo, enquanto o pai preparava a espingarda pica-pau para liquidar a fera.
A mãe ajoelhou-se no corredor que dava pra cozinha, olhos fixos na cobra (para que ela não fugisse, explicou depois) e deu um nó na combinação, crendice da roça destinada a paralisar cobras e outros bichos peçonhentos. Do quarto das crianças dava para ouvir o barulho sincopado de socar pólvora, bucha, cera e outros condimentos daquela receita mortal. Finalmente, os passos do pai fizeram tremer as tábuas velhas e soltas do assoalho. Os filhos prenderam a respiração à espera do tiro. Que veio mais forte do que todos os tiros do mundo (ele confessou depois que botara “uma carga especial”). Houve um silêncio de segundos e o grito do pai: “Vem ver!. Matei a cobra!”. Correram todos pra cozinha. O caixote de sabão, sobre o qual se apoiava a bacia de alumínio, tinha desaparecido com o impacto da chumbada. Da cobra, só se achou a cabeça e um pedaço do corpo no meio dos destroços sob a pia. Junto do guarda-comida, um móvel desses que as geladeiras sepultaram, estava mais um pedaço: o rabo e outra parte do corpo. As duas peças não se juntavam. Faltava um bom pedaço, exatamente do meio da cobra. E toca a procurar o pedaço que faltava, porque ninguém conseguiria dormir sabendo que faltava uma parte, e que essa parte poderia ganhar uma cabeça nova por obra das lendas que corriam na roça. Não foi preciso procurar muito. A parte que faltava estava dentro da mesma lata em que a mãe vira, poucos dias antes, uma cobra imaginária de açúcar derretido. E foram todos dormir sem se dar conta de que a mãe tinha poderes sobrenaturais, pois era capaz de fazê-los sobreviver com angu e de advinhar que cobras ferozes são capazes de se esconder até mesmo nas latas de açúcar. Romildo Guerrante além de contos, também
escreve poesia, embora com menor regularidade. Profissional de comunicação
social, tem na literatura um de seus afazeres prazerosos e suas obras já
obtiveram reconhecimento e foram publicadas. Para ler, tem especial predileção
por Drummond e Fernando Pessoa.
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